Um pouco de história não faz mal a ninguém...
Negros fundaram a base da culinária tipicamente brasileira
Pela porta da cozinha / por André Sender e Gabriel Rocha Gaspar
Mingau,
pamonha, canjica, mocotós, vatapá, caruru, acaçá. O que tudo isso tem
em comum, além do fato de serem comidas tipicamente brasileiras? Todas
nasceram em mãos negras, na cozinhas da casas grandes. São pratos fáceis
de comer, que dosaram a força e o exotismo dos temperos africanos para
gostos portugueses. São misturas que resumem nossa pluralidade cultural
ao condensar ingredientes e técnicas africanas, indígenas e européias.
Durante
três séculos, toda a comida da sociedade brasileira – majoritariamente
agrária – passou por mãos negras. Escravos (mulheres e homens menos
aptos ao trabalho no campo) comandavam as cozinhas coloniais, inventando
pratos, adicionando novos temperos e adaptando ingredientes indígenas e
africanos ao paladar do "nhonhô" português.
Como
disse Gilberto Freyre, "a negra fez com a comida o mesmo que fez com a
língua". Se em gargantas negras, Marias Antônias viraram Tontons e
Marias Josés viraram Zezés, nas mesas da Casa Grande a comida ficou mais
fácil, mais maleável. "A negra foi um intermediador muito forte das
rupturas na cozinha da colônia", conta a coordenadora do Núcleo de
Estudos Freyrianos da Fundação Gilberto Freyre, Fátima Quintas. Por
exemplo, foi ela que fez a ponte entre a mandioca nativa e o paladar
português, acostumado ao pão de trigo. Para aliviar o sacrifício
gastronômico do lusitano, criou-se o beiju de tapioca, entre outras
mimeses do pão europeu.
Ainda
hoje, a forte comida de origem africana pede adaptações para sobreviver
ao gosto de novos consumidores. Luisa Inês Saliba, dona do restaurante
Rota do Acarajé, em São Paulo, conta que pessoas do mundo inteiro
vêmatrás da iguaria. "A gente adapta [o acarajé] a um paladar mais
suave, principalmente no o dendê e no tempero com coentro, que são
coisas que chegam a assustar os visitantes na Bahia". Muito por causa
desta necessidade de mudar, Luisa é uma criadora de pratos inveterada. "Quando
se trata de culinária, sou uma workaholic. Mesclo todas as influências,
como de tudo, bebo de tudo, sou 'pesquisadeira'. Mas um ou outro
ingrediente [tipicamente baiano] sempre rege a criação". Exatamente como
faziam as negras das cozinhas coloniais – adaptavam a todos os gostos,
mantendo a África como fio condutor.
Nos
séculos de escravidão, a cozinha era o espaço de uma convivência mais
harmoniosa dentro da estrutura profundamente opressora do regime
vigente. "Por uma necessidade de ter com quem conversar, as mulheres
[brancas] da casa iam para a cozinha", conta Fátima. Essa
pseudo-liberdade do negro fora do campo, aliada aos momentos de ócio que
o trabalho de casa propiciava, foi responsável pelo surgimento de
pratos complexos. "As horas vagas e a quantidade de pessoas para servir
permitiram que os doces, principalmente, demorassem uma tarde inteira,
por exemplo, para ser feitos". Este cenário, aliado à monocultura da
cana, propiciou uma doçaria complicada, que inclui manjares, bolos e
tortas.
"A negra fazia uma cozinha de muitas horas, de muito trabalho, de arte", diz Fátima. O
esmero foi tanto que passou dos sabores para as aparências: dos pratos
às toalhas de mesa. E, principalmente, nos tabuleiros – este modelo tão
africano de vender comida. Na Bahia de hoje, por exemplo, as rendas são
tão presentes quanto os cheiros de coentro e azeite de dendê. Os
enfeites, tanto quanto a comida, são feitos com esmero e cuidado, custe o
tempo que custar. Como observa Luisa Inês, "há que se respeitar a
culinária, [fazê-la] com todo o carinho com que deve ser feita". Isso
significa que o prato começa a ser feito no momento em que o cliente
pede. "É tudo mais fresquinho", completa a chef. Tamanho
cuidado é preconceituosamente confundido com preguiça. Mas a verdade é
que não há espaço para pressa na cozinha de origem afro. Fast food não
bate com os tantos elementos místicos e sagrados que os negros associam à
comida.
No candomblé, por exemplo, até os
santos comem. "A religiosidade do negro [que nutria muito menos pudores
sexuais do que o cristianismo] com a sexualidade do português cunharam
uma coisa muito interessante: doces com nomes sensuais" aponta Fátima
Quintas. "A casa grande era altamente sexualizada, com um cristianismo
muito prosaico, lírico". A comida era mais um estímulo sensorial, quase
sensual. Por isso, doces criados na casa grande têm nomes eróticos como
baba-de-moça, suspiro, sonho, teta-de-nega...
A
mão que mexeu o caldo da formação culinária (e, conseqüentemente,
cultural) brasileira foi negra. Por mais que as mestiçagens acontecessem
por todos os lados – como é praxe no Brasil –, no final, foram os
negros que meteram a mão na massa. Por isso, tudo o que o brasileiro
típico come hoje, desde o arroz com feijão mais básico até a mais
elaborada paella, tem um resquício das mentes criativas da senzala, que
uniram o paladar europeu às tradições indígenas e africanas. Formou-se
uma gastronomia leve e densa, simples e sofisticada, forte e sutil. Um
paradoxo de sabores e influências, tão diverso quanto o Brasil.
Fonte I Fátima Quintas
Fátima
Quintas é formada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de
Pernambuco. Pós-graduada em Antropologia Cultural pelo Instituto de
Ciências Sociais e Política Ultramarina, de Lisboa. Pós-graduada em
Museologia pelo Museu das Janelas Verdes, de Lisboa. É mestre em
Antropologia Cultural pela Universidade Federal de Pernambuco e
coordenadora do Núcleo de Estudos Freyrianos da Fundação Gilberto
Freyre. Autora dos livros "Sexo e Marginalidade" e "Sexo à moda
patriarcal", entre outros.
Quem quiser saborear ou aprender os Pratos da Bahia é só acessar o Link da Rota do Acarajé!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
siga nos e comente nossas publicações